A educação e a integridade humana
O cinema contribui para
desenvolver o que se pode chamar de competência
para ver, analisar, compreender e apreciar qualquer história contada em
linguagem cinematográfica.
"A Língua das Mariposas", um filme
do diretor José Luis Cuerda (um ícone do cinema espanhol), que permite uma
reflexão interessante sobre a escola e a educação. O filme tem como pano de
fundo o período imediatamente anterior à Guerra Civil espanhola e narra as
descobertas do menino Moncho na escola e sua amizade com o dedicado professor
Don Gregório.
Tenho assistido profissionais da educação falando e
escrevendo sobre projetos pedagógicos, modelos de aprendizagem, técnicas,
funções, sentidos e papéis, como se houvesse uma receita, uma dose certa e um
uso adequado dos ingredientes que levasse à feitura do tão sonhado quitute: a
competência docente.
O filme "A língua das mariposas"
(La lengua de las mariposas), provoca reflexões sobre o assunto. Tendo como
contexto, o início da guerra civil espanhola, o filme apresenta o cotidiano de
uma sala de aula em uma pequena escola interiorana e seu único professor. O
velho mestre tem alunos de tamanhos e idades bastante variáveis e como cenário
a habitual sala envidraçada e o clássico quadro negro.
Há uma cena em que o professor tenta falar com a
classe, mas vê-se impedido pela desordem e pelo barulho que os alunos
fazem. Ele se vira para a janela a olhar a paisagem lá fora, em silêncio,
até que as crianças percebam que ele não está mais tentando falar e se calam.
Ele, então, se vira para a classe e não dá sermão nenhum, ou lição de moral.
Apenas diz algo mais ou menos assim: “A primavera está chegando e poderemos ter
nossas aulas no bosque. Poderemos ver borboletas e mariposas... Vocês sabiam
que as mariposas não têm língua, mas sim probóscide, um órgão que se assemelha
a uma tromba..." E segue contando sobre mariposas e outros bichos,
enquanto têm vidrados nele, dezenas de olhares curiosos. E quando mais tarde,
eles vão ao bosque, o professor vai ensinando pelo caminho um pouco de
biologia, outro tanto de botânica, outro de geografia... Salpicos de
conhecimento, pequenos sutis convites à descoberta de outros curiosos caminhos;
um tênue fio que, seguido, pode levar a uma caminhada prazerosa ao mundo das ideias
e do saber.
Alguns educadores assistiram ao filme e admiraram o
velho mestre que “não tinha projetos didático-pedagógicos, não tinha outro
material à disposição que não a natureza, não contava com o apoio de
coordenadores, pedagogos, psicólogos e fonoaudiólogos, mas sabia e queria
despertar o interesse e a curiosidade em seus alunos, e talvez, neste fato
resida a magia e a beleza do ensinar” (TEIXEIRA, 2002).
Não pretendo aqui divulgar uma ideia romântica e
utópica sobre educar, nem propor que saiamos todos a passear por bosques e
campos, caçando borboletas e colhendo flores. Não. Proponho que nos apropriemos de todos os recursos
disponíveis, que assumamos o ambiente escolar como ele se apresenta,
seja numa sala de informática com computadores de última geração, seja numa
escola rural com velhas carteiras e escassez de giz. Proponho que, incorporando
esse ambiente, ele deixe de fazer diferença e o verdadeiro estímulo para nossos
alunos esteja em nossa capacidade e em nosso desejo de ensinar. O professor tem
a obrigação de ser mediador entre o conhecimento que existe no mundo e as
mentes (e a sensibilidade) de seus alunos.
Furtar-se disto, culpando as estruturas físicas ou sócio
pedagógicas da escola pelo seu insucesso, é abrir mão da possibilidade de
descortinar mundos de sensações, experiências e aprendizados para esses seres
que estão sob nossa tutela e responsabilidade. Não há manuais de auto ajuda que
façam um professor ser um bom professor, mas há leituras a serem feitas, filmes
a serem vistos, músicas a serem ouvidas, museus a serem visitados e são essas
viagens que poderão fazer diferença na vida e no trabalho de um professor.
Sempre digo que não se ensina ninguém a desenhar, mas pode-se ensinar a
olhar. E o olhar pode ser mais e mais aprofundado, diverso, curioso.
Esse mundo tão cheio de armadilhas merece de nós um olhar sherlokiano
e isso se aprende sim. E o professor pode ser o “motivador” dessa aprendizagem.
Seja apresentando aos seus alunos a Tarsila ou o Picasso, ensinando-lhes
técnicas de xilogravura ou de papel reciclado, lendo um poema, ou uma história
em quadrinhos, ouvindo uma canção, examinando atentamente uma formiga ou
resolvendo um problema de física.
É por meio de uma prática reflexiva, às vezes
solitária, às vezes grupal, que o professor consegue preencher suas lacunas e completar
seus vazios. Um profissional reflexivo aceita fazer parte do problema. “Reflete
sobre sua própria relação com o saber, com as pessoas, o poder, as
instituições, as tecnologias, o tempo que passa a cooperação, tanto quanto
sobre o todo de superar as limitações ou de tornar seus gestos técnicos mais
eficazes." PERRENOUD, Phililippe.
O cinema contribui para desenvolver o que se pode
chamar de competência para ver,
analisar, compreender e apreciar qualquer história contada em linguagem
cinematográfica. longe de ser apenas uma escolha de caráter exclusivamente
pessoal, constitui uma prática social importante que atua na formação geral das
pessoas. A educação que é ministrada no interior da escola é uma das muitas
formas de socialização de indivíduos humanos, um entre muitos modos de transmissão
e produção de conhecimento, de constituição de padrões éticos, de valores
morais e competências profissionais. E em sociedades audiovisuais como a nossa,
o domínio dessa linguagem (cinematográfica) é requisito fundamental para se
transitar bem pelos mais diferentes campos sociais.
Seguindo esta estratégia da criticidade com a
esperança de ensinar continuo trazendo aqui mais algumas anotações sobre estas
ricas discussões: O currículo é o local da mudança, é o espaço onde se colocam
as expectativas e projetos de construção de um ser humano, qualquer que seja o
modelo esperado (competente, vencedor, crítico, cidadão...). É a escola que, de
maneira organizada (ou ainda de modo caótico), possibilita ao aprendiz a
escolha, o posicionamento (crítico ou não) perante o universo de situações
enfrentadas no dia-a-dia escolar. Na escola, toma-se partido, une-se a um grupo
ou outro, iniciam-se/esboçam-se futuras opções. A educação é o espaço da
formação e da informação. Até sociedades primitivas partem do exemplo a ser
seguido. Na escola, desperta-se o interesse do aluno para um ou outro aspecto
da cultura humana através das disciplinas. Forma-se o ser humano através da
apresentação do conhecimento acumulado, permitindo que ele também construa o
seu. A escola é um mundo em miniatura, por mais clichê que esta afirmação possa
parecer, e ensina ao aluno a vida em grupo e em sociedade. As oportunidades
esportivas e de trabalho em equipe servirão para futuras experiências
profissionais. É no espaço escolar que se solidificam valores morais e éticos,
ainda que implícitos ou velados no processo da aprendizagem e nas relações
sociais. A escola é um espaço controlado em que se pode fazer uma leitura do
mundo, e que prepara o educando para viver nele.
Diversos momentos do filme comprovam os processos
motivadores na educação: a
descoberta do menino Moncho e seu encantamento pela escola e a admiração
pelo conhecimento do professor; a sua amizade com o educador e o maior presente que
recebeu – a literatura: A Ilha do Tesouro
– a chave de acesso ao conhecimento; os passeios (estudos do meio) em que se levava a informação da
sala de aula para o mundo que o menino já conhecia; as conversas e os questionamentos que
ele levava para casa, perguntando isto ou aquilo, ou simplesmente gabando-se do
que havia aprendido; o
respeito, a partir da superação de um trauma (quando o professor
demonstra o seu respeito no primeiro dia de aula); a confiança que depositou no professor ao
perguntar-lhe sobre a morte (o que era?).
Se analisarmos por estes exemplos, a escola pode
tudo, pode realmente transformar o mundo! Por outro lado, talvez a escola e a
educação nada possam fazer pelo ser humano: Os chamados “apelos” do mundo são
bastante fortes e muitas vezes sufocam e/ou impedem o trabalho de um professor
e de uma escola alternativa. As crenças e os valores da família e do grupo
social a que pertence o aprendiz são elementos muito poderosos na formação do
ser humano. O modelo social vigente ou considerado superior é uma meta a ser
seguida e nem sempre é o mesmo indicado pela escola que o aluno frequenta.
Influências culturais seculares muitas vezes servem de atalhos que levam os
alunos a lugares opostos aos que a escola aponta como adequados. Pressões
culturais, étnicas, podem fechar as portas abertas pela educação, apontando
para uma realidade imutável. Pode haver até a confrontação, o questionamento
das posições da escola.. Fatores econômicos localizados ou globais interferem
na vida do aluno a ponto de levá-lo até à evasão.
Conflitos emocionais, por sua vez, surgidos fora do
espaço escolar também podem tirar o aprendiz da escola e dificultar o seu
desenvolvimento. Novamente, vamos encontrar exemplos no filme: a influência e a
pressão do pai rico na escola (tentando determinar/orientar o modo de agir do
professor); a pressão do padre que questionava o conteúdo estudado pelos alunos
e o consequente distanciamento da religião; a força da mãe no momento de crise
(quando surge a repressão política e ela orienta o agir e mesmo o falar de cada
um); o calar do pai e seu sofrimento por calar, por ter medo; a postura da
sociedade que, por questões de sobrevivência, reúne-se contra pessoas do
próprio convívio; o medo do menino Moncho, que segue o modelo social e reage
igualmente contra o professor que tanto admirava... Evitando um posicionamento
totalmente positivo da função da escola e do papel exercido pela educação na
formação dos indivíduos, e evitando o olhar totalmente negativo, é importante
lembrar que, se a sociedade como um todo educa através de seus modelos e
exemplos, sem a escola, a situação estaria ainda pior.
A educação
abre sim portas e permite escolhas. Palavras tão parecidas essas: escola e escolha... O
aluno pode aprender, no meio escolar, a posicionar-se criticamente perante a
sociedade.
Lembrando novamente A Língua das
Mariposas, é como que um “salvamento” do ser humano (o professor impede uma
séria crise de asma). Figurativamente, poderia impedir que o jovem estudante
fosse seja “sugado” e/ou sufocado pela sociedade em que vivia. O educador pode
repetir, como o velho mestre, que “ninguém lhes roubará o tesouro da liberdade:
Voem!”. Alguns vão ouvir, alguns certamente irão voar... Infelizmente, para os
professores, nem tudo sempre corre bem. É plantar sem saber se vai haver
cuidados com a planta...
Ainda em referência ao filme, há ocasiões em que
nos restam, a nós, educadores, como a Don Gregório, apenas o vômito, os
insultos e as pedradas. Aos meus amigos e professores eu gostaria de dizer que
ao descerrarem janelas, abrirem portas, disponibilizarem caminhos, construírem
picadas no meio da mata do saber instituídos, vocês o faz com certeza, com um
só intuito, o de ensinar a conhecer o mundo.
Espero tê-los motivados ao menos a assistir ao
filme e talvez vocês façam outras analogias, ou descubram outros tesouros...
Lúcia Ribeiro
Referências bibliográficas
DUARTE, Rosália. Cinema & Educação. Belo Horizonte, Autêntica, 2002.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo, 28 ed., Paz e Terra, 2003
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